Quando olhamos para o passado, associamos instantaneamente o presente à memória como instância mais vivificadora, e encontramos nele algum vestígio ascensional: paradoxo e auto-engano dos maiores, visto que nunca estivemos tão arcaicos.
Recorrendo à linha do tempo filosófica, geralmente encontramos boas analogias. Esta arcaização da mente humana – tão criticada por Nietzsche a respeito dos valores tradicionais – subsiste, e a pergunta é, adequada a contemporaneidade, como não sofre ainda sérios abalos de estrutura.
Pois, que a humanidade preze teoricamente pela verdade, pela beleza, pelos valores e pela ordem apolínea
[1] de sua realidade não é dado surpreendente, considerando que, nos próprios termos nietzchianos, Sócrates iniciou esta jornada logocêntrica
[2] e portanto, esta herança perpetuou-se em longa jornada. Em tese, perpetuada; na prática, cada dia mais complexa: é como se a mente humana ditasse (com as melhores das intenções) as diretrizes e o corpo relutasse em acompanhá-los.
Deixemos adormecidos o responsável pelo nascimento da lógica na sociedade e um de seus críticos mais ferrenhos. Voltemos à perpetuação da herança.
Com a descoberta do
cogito, ergo sun[3] cartesiano, os avanços epistemológicos e a desvinculação da ética / religião do plano da política (entre outras inúmeras transformações), temos a elaboração da modernidade. Com o status da ciência como ferramenta segura e mais precisa para se chegar ao conhecimento, testemunhou-se o início de uma era industrial e tecnológica que não dá vislumbres de fim. Com o predomínio dos fatores empíricos e a simpatia pelo utilitarismo (e pragmatismo), matamos as causas metafísicas e diminuímos consideravelmente o poder de contemplação.
Toda esta ascensão (impossível de ser sintetizada em apenas um volume bibliográfico) resultou no sucesso do projeto moderno, onde o homem validou perfeitamente a distinção cartesiana entre
res cogitans e
res extensa: tornou-se coisa pensante para construir um universo de possibilidades na extensão da natureza (o homem como “
maître et possesseur de la nature”).
A tecnologia, os preceitos modernos, os direitos humanos, o esclarecimento à luz da razão, o pragmatismo da política, o culto ao trabalho, o hedonismo, o utilitarismo e tantas outras conquistas viriam para uma só finalidade: a melhoria da vida humana.
Se entendemos este avanço como avanço tecnológico e industrial que viabiliza a comodidade e praticidade da vida, somos coerentes em pequena parcela. É certo que a tecnologia ofereceu (e oferece) grandes triunfos ao homem, mas é certo também que estamos rodeados por uma série de problemas resultantes do uso desenfreado da tecnologia na extensão.
Mas, para chegarmos ao ponto nevrálgico da questão, deveríamos apontar um Marx ou um Sartre da vida, tão cientes da falácia que encobre a luz do caminho racional humano, como plataforma para a falha do projeto moderno. Um, escancarando o absurdo da existência; outro, reconhecendo o cerne da disparidade na História, e tantos outros. Poderíamos utilizar Kierkgaard, verificando a angústia como uma das condições inevitáveis do homem; Heidegger descobrindo o
dasein por vezes envolto à ruína; Schopenhauer, Hobbes e Maquiavel descrentes da natureza humana.
Apontaria diversas fontes e trechos bibliográficos que atestam nossa insuficiência, não apenas a cognitiva apontada por Kant, mas para executar o respeito à alteridade. Pior, poderia eu apontar os espetáculos bélicos, a não esquecer que “um planeta tão pequeno foi mil vezes coberto pelo sangue”, como Neruda bem explica.
Poderíamos também dizer que as artes saíram ao leilão da perfídia, após ver a grande magia do cinema render-se como arte-propaganda nazista. Enfim, poderia levantar a bandeira benjaminiana de uma História monumental que encobre as ruínas esquecidas, tal como os avanços pós-modernos
[4] científicos e desdobramentos mercadológicos que se apresentam.
Mas, diante de toda a História dos homens, como aprendemos a errar, errar, e a errar consecutivamente em relação às mesmas coisas? Como, após testemunhar sanguinolência oriunda da recusa às diferenças, a humanidade não suporta e nem executa o respeito à alteridade? Como é possível que, mesmo observando os constrangimentos e catástrofes que o dinheiro
[5] pode provocar, a glorificação ao poder subsista inabalável?
Da glorificação desenfreada ao poder e a busca por segurança financeira antes de todas as coisas, o ideal burguês de culto ao trabalho e o início do vício prazeroso do poder de autonomia fortalecido nas periferias do Sacro Império Romano-Germânico, nos dá somente uma pista de como chegamos até aqui. Das outras vertentes saguinolentas, são questões diversas, das quais não se obtêm respostas satisfatórias nem mesmo da parte científica.
Assim, vou eu a prosseguir no mundo analisando também todo o tipo de preconceitos que adquirimos, que tomam formas de acordo com o tempo, mas nunca desaparecem. Vou me afogando neste mar de clichês insuportáveis. Vou analisando como uma mesma mente indica progresso e pode matar qualquer ser vivo por prazer de ver o sangue; como as explicações behaviorísticas sobre nossas condutas são obsoletas; como o
cogito inaugurou a idéia de autonomia e autopreservação da consciência para ser assassinado por sua própria liberdade.
De tudo, gostaria de pensar como Rousseau; que a humanidade, o “bom selvagem” fora corrompido pelo processo de socialização. Mas, Schopenhauer estará mentindo ao dizer que “o sentido mais próximo e imediato de nossa vida é o sofrimento”?
“A história mostra-nos a vida dos povos, e ali encontra apenas guerras e rebeliões para nos narrar; os anos de paz nos parecem tão-somente breves pausas, entre atos, aqui e ali. Igualmente a vida do ndivíduo é uma luta contínua com a necessidade e o tédio, e não apenas no sentido metafórico. Por toda a parte o homem encontra oposição, vive continuamente em luta, e morre segurando suas armas” (Schopenhauer).
[1] (Referente a Apolo) Termo usado por Nietzsche para designar a racionalidade e a lógica da realidade, oposta ao termo “dionisíaco” (referente a Dionísio).
[2] Do grego
logos, que significa razão.
[3] “Penso, logo existo”, expressão de René Descartes.
[4] Uma construção história errônea, aos olhos de muitos. Pois, o projeto moderno não cumpriu a sua função. Do contrário, podemos utilizar o termo “contemporâneo” se entendemos que a pós-modernidade existe para apagar os incêndios da modernidade.
[5] Segundo o economista Richard Layard, o progresso financeiro mão corresponde necessariamente ao aumento do índice de felicidade: “ao longo dos últimos 50 anos, nós, os ocidentais, fomos beneficiados por um crescimento econômico sem paralelo. Hoje, nós dispomos de casas, automóveis, férias e empregos melhores, e, sobretudo, de sistemas educacionais e de saúde mais aprimorados. Conforme reza a teoria econômica padrão, isso deveria ter tornado todos nós mais felizes.Mas as pesquisas mostram que não é bem assim. Quando perguntam aos britânicos e aos americanos se eles se sentem felizes, eles respondem que não houve qualquer melhora neste campo nos últimos 50 anos.Um número maior de pessoas sofre de depressão, enquanto a criminalidade -- um outro indicador de insatisfação -- está muito mais elevada.Esses fatos representam verdadeiros desafios para muitas das prioridades que nós havíamos definido para nós mesmos, tanto como sociedades quanto como indivíduos. A verdade é que nós nos encontramos numa situação que o homem desconhecia anteriormente.Quando as pessoas vivem no limite da sobrevivência, o progresso material de fato as torna mais felizes. As pessoas que vivem no mundo rico (ou seja, com uma renda anual acima de, digamos, US$ 20.000 --R$ 52.640-- por pessoa) são mais felizes do que pessoas de países mais pobres, enquanto as pessoas que vivem em países pobres se tornam de fato mais felizes quando elas se tornam mais ricas.Mas, quando o desconforto material está finalmente banido, a renda adicional torna-se muito menos importante do que os nossos relacionamentos uns com os outros: com a família, com os amigos e dentro da comunidade. O perigo vem de que nós sacrificamos em demasia os nossos relacionamentos ao perseguirmos uma renda maior”. Lembro também que na Suécia, um dos países mais ricos do mundo, o suicídio é a principal causa de mortes entre pessoas de 15 a 44 anos.