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quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

OS CLÁSSICOS MORRERAM, MORRERAM OS CLÁSSICOS


Quando observamos algumas estatísticas em certos âmbitos, observamos que o que os números não dizem corresponde ao teor das verdades que querem ser esquecidas. Tal como a história monumental apontada por Benjamin encobre os mortos e ruínas esquecidas, a literatura consumida pela maioria da população brasileira, ou melhor, os “livros mais vendidos” nas prateleiras encobrem outro fator: os clássicos morreram para a massa.

Nem sequer sabemos se eles de fato existiram. Mas, sabe-se que fenômenos como “Harry Potter”, “Quem mexeu no meu queijo”, “O segredo”, livros de auto-ajuda, biografias que personificam o poder, debates desgastados sobre religiosidade e ocorrências históricas (“Código Da Vinci” está ao lado de outros mil), “Homens são de Marte, mulheres são de Vênus” e outros, sepultaram os clássicos da literatura universal.

Lê-se “Dom Casmurro”, geralmente já inserido – muitas vezes desproporcionalmente – no colégio. Lê-se Monteiro Lobato para o vestibular. Lê-se “Crime e Castigo” ou “Política” para áreas penais. Muito diferente de afirmar que os clássicos são presenteados ou adquiridos por espontaneidade.

Minhas crônicas, tão polêmicas, são unilaterais ao extremo – assim dizem e eu acredito. E justamente quando penso se estou a ultrapassar os limites da comicidade, lembro-me que todo pessimista inveterado é, antes do excesso, realista. Pois, o pessimismo não é fabricado de acordo com ilusões. Antes do vício, há sempre o errado para se discutir.

Pensando nisto é que me perguntei aonde andam os clássicos; por que Camões ou “Don Quixote” subsistem nas bibliotecas particulares por herança de uma época mais fecunda para os clássicos; e visto que esta época jaz obsoleta, por que “Sonhos de uma noite de verão” e “A lira dos vinte anos” são adquiridos dez vezes menos do que “Pai rico, pai pobre” e “Contos de Nárnia”.

A menos que insistam, peço que não me julguem cega. Entendo que os clássicos estão sempre vivos, mas ando observando que se transformaram em zumbis: vivos na imortalidade da tradição e mortos nas prateleiras.

A divulgação em massa tem grande importância para a queda da aquisição dos clássicos. E além disso, quem poderá saber se “O caçador de pipas” e “Perdas e danos” serão clássicos daqui a duzentos anos. A questão é menos a qualidade de best-sellers, publicidade, autores e editoras consagrados, que a pobreza da predisposição de um indivíduo para a adquirir “Quando Nietzsche chorou” do que o próprio Nietzsche.

Esta é a resposta, infelizmente concreta. A divulgação em mídias de largo alcance não assassina um clássico, quebra uma de suas pernas. Quem assassina o clássico é mesmo o cidadão comum.

Não raro, constam nas opiniões que livros são muito caros; e quem não tem o hábito de ler apega-se a esta escada de incêndio. Geralmente, são estes mesmos “desprovidos” que em épocas festivas propícias aos presentinhos e em épocas de vacas menos anoréxicas, pensam em comprar um livro cultuado (seja para presentear, seja para deleite pessoal) no cenário mercadológico, adquirindo assim os “mais vendidos”.

Melhor adquirir um livro de auto-ajuda que não é dos mais baratos, que se aventurar a conhecer os pilares do pensamento universal. De vez em quando, aparecem às mãos destes leitores algum Fernando Sabino.

O povo brasileiro é um povo que não tem o hábito da leitura impresso na consciência, na educação. O rapazinho ganha primeiro uma bola de futebol, depois adquire um livro – de preferência curtinho e com letra garrafal. Mas, além desta lacuna (culpa da estrutura do país), há a desculpa de que os preços dos livros são exorbitantes.

Não há mais esta saída, atualizo. Poderia haver como outrora, se “A moreninha” e “A metamorfose” não estivessem tão em conta. Mais em conta que “Porque os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor” e Paulo Coelhos da vida (Shame on you, Academia!).

Os leitores afirmam suas preferências aos vários outros tipos de literatura. O lema é “prefiro literatura espírita”, “romances de ficção científica atuais”, “estórias vampirescas”, etc. Mas, como preferir isto ou aquilo em voga, se não há vontade de adquirir “A volta ao mundo em oitenta dias”?

Por que comprar crônicas jornalísticas ou livros conselheiros de finanças, sendo que “O cortiço” custa menos? Saberão eles que “Robinson Crusoé”, “Odisséia”, “As aventuras de Huckleberry Finn” e “Iracema” estão em diversos pontos de vendas alternativos (sebos e afins), custando de cinco a vinte reais a unidade?

Isto é um problema. Não é adquirir a biografia de um mago das finanças qualquer; é a ausência de vontade para os clássicos. A falta desta inclinação assina a sentença. Da mesma forma que a percepção humana se tornou amante dos choques (e viva Benjamin!), o leitor moderno se tornou amante daquilo que é menos complexo e mais vendável.

Esta descoberta não é um atestado de academicismo. Não é ilegal se interessar por um almanaque global da televisão brasileira ou gostar de Sidney Sheldon (amo de paixão!). Mas, é muito triste não saber por onde andam “Fausto” e “O jogador” – que juntos, custam vinte e três reais.


02/01/2008 – Happy new year!




OBS: Para quem deseja conhecer os clássicos sem gastar muito dinheiro: existem coleções que agrupam textos clássicos, como “Grandes obras do pensamento universal” e “Grandes obras da língua portuguesa”, nas quais cada livro custa de quatro a sete reais nas bancas. Para quem deseja coleções de editoras mais renomadas, há a “Coleção L&PM pocket” e “A obra prima de cada autor”; nelas os livros preços variam de 11 a 23 reais. Há também a coleção “Companhia de bolso” da Companhia das Letras. Livros de bolso não machucam o bolso de ninguém.

OBS 1:Sebos são pérolas para o leitor! Na maioria deles, os clássicos são bem baratos. Para pesquisar alguns sebos de sua cidade: http://www.estantevirtual.com.br

OBS 2: Não é pecado não gostar de ler. Como diria Pessoa, “O Sol doira sem literatura...”

OBS 3: Não é preciso um grau de instrução elevado para ler Balzac, Eça de Queirós e tantos outros.

Uma carta para Elliot

Oh!... meu querido Elliot, quanto tempo! Só a ti atribuo a classificação de amigo de uma vida inteira! Até aqui, entretanto, nada há de novo em minha exacerbada e inquieta carência... Bem, tu, como ninguém, sabe como sou. Mas que saudades tenho da tua presença! Perdoe-me por tamanha afeição!...
Talvez esta minha sensibilidade agora se manifeste de maneira mais explícita, por dois motivos em particular. Primeiramente, não te escrevo desde a páscoa de noventa e seis. Além disso, aconteceram-me alguns episódios deveras singulares...
Como tu sempre estiveste ciente de que meu futuro estava destinado ao exílio, creio que ficarás feliz em saber que, há dois anos (talvez dois anos e meio) que me instalo em um casebre, nas redondezas de um subúrbio vizinho da praia de Gonvá. Trata-se de um mediano aglomerado de moradias precárias, rodeado por inúmeros becos que parecem intermináveis – até finalmente desembocarem ao encontro de uma vasta avenida, de nome Fernando Gonçalves. Amigo, de minha janela tenho uma vista privilegiada deste subúrbio, mais conhecido como “Morro do Kalunga”.
Ainda me recordo de minha primeira noite solitária neste pequeno – e por que não dizer aconchegante – casebre, que tanto me conforta. Dormi por volta das primeiras duas horas da madrugada, para posteriormente ser despertado por três cachorros de rua, excessivamente barulhentos.
Como sou dono de uma alma poeticamente insone, os “últimos boêmios” (lembra-se do Quintana de nossas noites?) aniquilaram a incômoda e soporífera exaustão, que há horas aborrecia-me. Já totalmente desperto, de súbito me levantei e fui seduzido pela estranheza do horizonte, proporcionado pela janela entreaberta. Lá estava então aquilo que, na parte da manhã, havia despertado em mim uma angústia inenarrável: o morro, a mais inteligente arquitetura da burguesia que tanto me enoja.
Ah... Elliot... se soubesses o quão diferente e mágico se torna o morro, quando cai a noite! É bem verdade que a baixeza se manifesta quando o sol se põe; mas mesmo assim, é compensador observar o contraste das poucas luzes amarelas, com as sombras que regem a soturnidade da aglomeração...
Assim foi o encanto daquele quarto de hora noturno, e assim ainda o é! Insisto em te narrar estes pormenores, pois naquela madrugada me igualei à lua; posto que, só nós dois observávamos – de bem alto – o Kalunga.
Já passei por muitos lugares, e Deus e tu são testemunhas. Não tive a sorte de me enamorar genuinamente por qualquer sólida companheira, fui um homem de prolongada promiscuidade e nunca senti o coração palpitar fervorosamente por meus laços de sangue. Tampouco me senti feliz por adentrar no estágio da velhice, como mero inútil intelectual que sobrevive às custas de uma pequena aposentadoria, convertida em manutenção das necessidades básicas – tais como morar, comer e dormir.
Mas caro Elliot, desde aquela madrugada, sinto-me distante do ápice que o desgosto poderia me proporcionar. E, como se esta dádiva me fosse de pouco tamanho, conectei-me com a mais perfeita das jovens almas, um menino especial de nome Daví.
Sinto uma estima tão tamanha por este garoto que, sinceramente, não sei como começar a descrição de nosso encontro. De antemão lhe antecipo: como se Nietzsche em Sils Maria tivesse encontrado o seu super-homem, me sinto. Creio ser esta magnífica criatura, um presente tardio do Criador para os meus setenta anos.

* * *

Bem próximas da minha casa, encontram-se quatro inseparáveis casas comerciais que de fato, parecem saciar com sucesso, os anseios consumistas de toda a vizinhança. Da esquerda para a direita são estas: uma drogaria, uma quitanda (de preços modestos e razoável qualidade), um boteco (este, definitivamente de boa qualidade!) e uma mescla incompreensível de açougue com padaria. Um pouco mais distante, há uma pequenina e fétida casa lotérica que - sustentada pelos sonhos suburbanos de súbito enriquecimento financeiro - haverá de sobreviver (em companhia das baratas) à radioatividade.
Milagrosamente, desde os tempos de nossa juventude, ainda mantenho a tradição de acordar pontualmente às seis horas da manhã, executando com calma o ritual de saborear despreocupadamente um bom café matinal. Como outrora, também continuo a apreciar alguns pãezinhos amanteigados, através dos quais me sinto mais disposto.
Devido a estes apetites, transformei-me em um freqüentador assíduo da padaria; onde (numa bela surpresa) descobri alguns quitutes caseiros um tanto maravilhosos. Deste modo, como passo por lá regularmente, reconheço sem dificuldades os rostos costumeiros dos funcionários e fregueses que por lá transitam e, conseqüentemente, até disparo alguns cumprimentos. Entretanto, há alguns meses, enquanto me ocupava em pagar pelos paradisíacos docinhos, reparei que havia um novo funcionário.
Era então o menino Daví, que fora admitido como empacotador dos produtos adquiridos por nós, consumidores, numa tentativa gerencial de manter a nossa fidelidade, por via desta nova “comodidade”.
Logo me vi tentado a cumprimentá-lo – devido a sua feição tristonha - e antes de ir embora lhe perguntei a que horas costumava almoçar.
- Não posso almoçar - me respondeu.
Naturalmente, fiquei um pouco confuso ante aquela resposta, pois todo trabalhador dispõe legalmente de algum tempo para realizar as suas refeições. Curioso como sou, tentei dialogar com o jovem que tanto prendia a minha atenção:
- Por que você não almoça?
- Ganho quatro merréis novos por dia, que mantêm o nosso lanche da tarde (referindo-se também aos seus três irmãos). Minha mãe trabalha durante todo o tempo, meus irmãos ficam aos cuidados de uma creche e, além disso, não há comida em casa...
Elliot amigo, para me safar do risco de parecer verborrágico, conto-lhe de uma vez o desfecho de nossa breve conversa inicial. Tanto fui tocado pelo simplório e eloqüente empacotador, que o convidei para ser minha companhia de almoço; assim, seria uma justa troca de caridade entre um velho solitário e um ser faminto.
De primeiro momento, senti em sua expressão facial a mais pura amostra de desconfiança; mas sob a influência da fome, começaram nossos almoços.

* * *

Continuando o relato, honrado Elliot, falo a ti de coração. E este só pode te dizer que se congratula por encontrar um jovem como Daví; essencialmente predisposto a formas eruditas de intelectualidade, somadas a uma honestidade invejável, própria dos moradores do Kalunga.
Reside aí toda a estrutura de meu fascínio: que o garoto seja visceralmente íntegro, já era de se esperar – pois é um típico morador do Kalunga. Todavia, nunca estabeleci tão estreito contato com um garoto humilde de quatorze anos, mal classificado como semi-analfabeto, separado da escola pela vergonha social; que é senão uma miscelânea de potencialidades intelectivas, carente de um lugar propício para o seu devido desenvolvimento.
Em Daví, a agilidade reflexiva é tão nítida que é facilmente diagnosticada. Hoje entendo perfeitamente o dia em que o encontrei, enfeitiçado por seu magnetismo: Daví nasceu para brilhar, e sua energia vencedora foi captada por um velho vivido e sensível...
Deve achar que estou caduco, não? Ah Elliot, bom velho...

* * *

Durante nossos almoços, conversávamos profundamente sobre a vida de Daví; ou melhor, ele falava de sua vida e eu o escutava. Descobri que ele queria ser poeta, mas tinha vergonha de suas criações e portanto, as destruía. Contou-me de seu gosto incomum pelas cores que, segundo as palavras do próprio, “são as poesias que dão ânimo vital a todas as coisas”.
Falou-me também do peso da ausência de um pai, e de como esta é vivenciada minuciosamente por seus irmãos menores. Sua mãe se tornou viúva muito cedo e - desprovida de bons antecedentes curriculares - viu-se forçada a cozinhar por desgastantes nove horas diárias, e a entreter alguns senhores por noites afora...
Confesso-te que me emocionei profundamente, e tive de lutar para disfarçar com dissimulação, as lágrimas. Daví não tinha o menor embaraço em ter uma mãe, digamos... meretriz. Constato que a maturidade, quando imposta arbitrariamente, aniquila certas emoções...
De resto, nos divertíamos com as anedotas de seus pequenos furtos cometidos – algumas gomas de mascar para os irmãos, revistas de entretenimento masculino e... um livro de Carlos Drummond de Andrade(!): este último, ponto de partida para os nossos “diálogos intelectuais”.
Interessadíssimo (e com certa desconfiança) pela refinada apreciação do moleque, pedi-lhe que trouxesse o tal livro num próximo almoço. Dito e feito: com um delicioso sorriso infantil, Daví colocou cuidadosamente – de forma que o título permaneceu virado para baixo – o livro em cima da mesa. Para não estragar o suspense, servi-lhe o almoço, simulando com maestria estar alheio ao objeto.
Nem bem terminada a refeição, fui traído pela impaciência e realizei a inspeção da obra, confirmando as minhas suspeitas (Caro Elliot, para situá-lo melhor: estou falando de “A Vida Passada a Limpo”).
Tomado por uma venturosa euforia, perguntei-lhe se queria “ser apresentado a outros poetas”. Foi o bastante para, no dia seguinte, Daví aparecer munido de um caderno e um lápis.

* * *

Recordo-me de que quando o inverno chegou, permanecia grande parte do tempo, perdido em devaneios nostálgicos... Elliot, pergunto-te: como não lembrar daquele nosso inverno em Lisboa? Nesta época estudávamos Fernando Pessoa e... Daví sempre ouvira muito ao seu respeito.
Embalados pelo clima ameno do meio dia, comentávamos que a alma poética se encontra em plenitude em dois momentos especiais: na solidão e no clima invernal (aplicando-se também ao outono). A prosa foi inspiradora, de tal maneira, que me aventurei a lhe mostrar as sombras de Bachelard.
Observei atento a sua identificação com Gastón, e também quando se regozijou ao copiar um de seus belíssimos segmentos:

“Com demasiada freqüência a psicanálise situa as paixões ‘no mundo’.
Na verdade, as paixões cozinham e recozinham na solidão.”

Não me canso de reparar o quanto este garoto se parece conosco, quando éramos jovens! Acredite ou não, Daví é até insone... e ainda simpatizante da boa música. (Agrego a este testemunho que, enquanto estudávamos Goethe, ouvíamos Zé Ketti!).
Tu não acreditarás no que, certo dia, mostrei a Daví. Aí vai uma interrogação: quantas luzes havia em nossas tardes de Domingo?

* * *

Antes que pudesse impressioná-lo com o impressionismo de Monet, Daví me concedeu uma graciosa leitura. Refletira muito sobre o inverno e, liberto de sua vergonha artística, presenteou-me com o seu primeiro poema – seguido de outros dois:

“ O Cenário dos Poetas Iconoclastas

É estranhamente belo
o cenário do inverno e da juventude,
para os poetas iconoclastas...

Ao pátio dos cinzentos bosques
o canto em uníssono das aves
lhes parece hino grunge,

As folhagens secas e o tabaco
configuram como amigos fiéis,

E o ar bucólico se transmuda
para os bares centrais,
a se fazer ouvir em guardanapos

Daví ”


“ Poeminha

Nunca vi fúria de amor
Nunca tive.
Nunca tive aquele amor,
De dor que inibe.

Nunca vi perna tremer
Pra quaisquer olhos que passam,
Nem senti estremecer,
interior de a barriga.

Nunca fiz da moradia,
teu recanto e meu recanto.
Não nasceu no meu jardim,
uma flor pra eu te dar.

Não tocou no toca-fitas
a canção da sua memória.
Não levei pra amizades
egoísmo e história,

que vontade de amar!

Daví ”

“ Mas que coisa é essa?

É coisa estranha e real,
tamanha, louca
esta coisa.

E onde está a sua alma?
Quando teve uma alma?

Nunca teve alma alguma,
numa ajuda, se precisa.
Te procura e a si mesma
em mentira de afeto.

Te escolhe, mas não salva
qualquer ato que é ser
Mas pudera!
Não tem alma
Não tem jeito
e não tem feito

coisa alguma
que é causa
de respeito.
Que respeito?

Não tem forma de humano
gleba, fúria de prazer
Nem o tempo marca exato
Finge sim, que necessita...

É real e quão estranha!
tua farsa na entranha.
Faz de ti a primazia...
(não te sabe e não quer)

E nem sabe o que queres,
e traz fábulas de amor?

Onde está a sua alma?
não tem alma, não tem vida.

Te magoa na semana,
faz no choro da ferida
coisa boa do horror.

Daví ”

* * *

Devo dizer que, durante a degustação das linhas de Daví, saudosista que sou, sentia-me carente de sua presença viva, Elliot! Nosso Quintana nos homenageou quando definiu a amizade.
Posso ver agora sua expressão inefável, ao saber que Daví chorou ao ver um retrato de “A Canoa sobre o Epte”. Devido à comoção que nos envolveu, dei-lhe a figura e... não se falou de outra coisa durante os dois meses que se seguiram.

* * *

Posteriormente, embora mal recuperado dos efeitos bombásticos surtidos por Monet, Daví se mostrava preocupado e melancólico. Graças ao bom Deus, ainda consigo usufruir da diplomacia que me resta; e foi explorando este artifício que consegui o desabafo do moleque. Com lágrimas nos olhos, disse-me:
- Infelizmente precisaremos interromper os nossos diálogos... Na cantina onde minha mãe trabalha, admitia-se um auxiliar de cozinha. Minha mãe logo pensou o quão útil e agradável seria se eu...
- Aproveitasse a oportunidade – interrompi. – Mas diga-me, será justa a remuneração que lhe será concedida?

- Sim, suficiente para garantir a presença das refeições do dia... Na verdade, esta oferta já foi discutida algumas vezes antes; e como fui admitido ontem, começo pontualmente às seis horas de amanhã...
Percebendo minha intenção de o interromper novamente, apressou-se em prosseguir em bom tom de voz:
- Permita-me respeitosamente concluir, senhor. Não há palavras no mundo capazes de descrever a benevolência do senhor para comigo. Com a mesma intensidade, me esforço para não cair em lágrimas ao lhe agradecer.
- O senhor tirou-me da mais ardente desvalia... Enxergou da forma que só um poeta poderia enxergar. Tal meu coração se encontra desfalecido, que lhe peço somente o mínimo de sua bondosa compreensão.
- Não me bastaria ter um Pai no céu, sem ter o senhor na terra. És o meu pai espiritual... e com o bom instinto paterno que lhe é inato, fez-me nascer cavalheiro onde antes residia senão um mero corpo abrutalhado. Que neste momento Goethe seja meu porta-voz, pois sinto que não há nenhum poema que contorne precisamente tua alma majestosa: “Como poderá a letra fria e morta reproduzir aquelas divinas efusões de espírito?”.
- Não terei tempo para me beneficiar com a tua presença, assim como agora não tenho a opção de escutar minha vontade de permanecer aqui. No entanto, assim que possível, pretendo retomar a nossa ligação mediante correspondências.
- Perdoai-me por optar não mais ouvir o soluço faminto dos meus irmãos! Deixe-me ir em silêncio...

* * *

Querido Elliot, nada pude proferir e, uma solitária lágrima que graciosamente passeou por minha face, exprimiu o indizível... Daví e eu nos abraçamos, e então lhe pedi que aguardasse alguns minutos.
Recobrei um pouco de minha lucidez e, mesmo mergulhado no sótão mentecapto da angústia, passei-lhe a última lição:
- Quero somente que copie algumas coisas que lhe serão como bússolas para toda a vida, além de uma nobre recordação... Depois, acho que é só...
Eis que lhe transcrevo a última recordação, aforismos nietzschianos que tanto nos orientaram outrora:

“Ainda existe uma vida para as almas grandes. Na verdade, quem pouco possui tanto menos é possuído. Bendita seja a modesta pobreza!”
“Mal se recompensa a um mestre, se dele ficarmos sempre discípulos.”
“Não é com cólera, mas com riso que se mata.”

* * *

Finalizada esta última lição, nos abraçamos novamente. Presenteei-o com o “Manifesto do Partido Comunista”, de Marx e Engels, e “Frankenstein”, de Mary Shelley; e observei da janela entreaberta, sua partida silenciosa...
Agora, é forçoso que eu termine esta carta, pois o sono saudável só o é quando aproveitado oportunamente... Ademais, a tristeza se apaga momentaneamente no repouso.

Saudades, Elliot!

Do amigo velho,

Enrico.